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@FernandoBasso
Created June 9, 2018 15:12
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Certas palavras tem o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias com todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.

Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.

— Os hermeneutas estão chegando! — Ih, agora que ninguém vai entender mais nada…

Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.

— Alo…

— O que é que você quer dizer com isso?

Traquinagem deveria ser uma peça mecânica.

— Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.

Plúmbeo deveria ser barulho que um corpo faz ao cair na água.

Mas, nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.

A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar deveria ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deveriam sussurrar ao ouvido de mulheres:

— Defenestras?

A resposta seria um tapa na cara. Mas, algumas… Ah, algumas defenestravam.

Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.

Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerram os documentos formais? “Nesses termos , pede defenestração..” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em?

— Aquele é um defenestrado.

Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exata.

Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração” vem do francês “Defenestration”. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.

Ato de atirar alguém ou algo pela janela!

Acabou a minha ignorância, mas não minha fascinação. Um ato como esse só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada a baixo. Por que então, defenestração?

Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.

— Lês defenestrations. Devem ser proibidas.

— Sim, monsieur le Ministre.

— São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.

— Sim, monsieur lê Mnistre.

— Com prédios de três, quatro andares, ainda era possível. Até divertido. Mas, daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: “Interdit de defenestrer”. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.

Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.

— É essa estranha vontade de jogar alguém ou algo pela janela, doutor…

— Humm, O Impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar – diz o analista, afastando se da janela.

Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.

Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 17º andar.

— Querida…

— Mmmm? — Há uma coisa que preciso lhe dizer… — Fala amor. — Sou um defenestrador.

E a noiva, na inocência, caminha para a cama:

— Estou pronta pra experimentar tudo com você. Tudo!

Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:

— Fui defenestrado…

Alguém comenta:

— Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela.

Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassa-lo e defenestrar essa crônica. Se ela sair é porque resisti.

Luís Fernando Veríssimo

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