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Acidente em 2029
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O ano é 2029. Hélio está mais uma vez aproveitando o trajeto semanal até a sede de seu escritório para por em dia suas séries favoritas. Enquanto relaxa tranquilamente no banco do seu carro elétrico, com o para-brisas tomado pelo streaming de vídeo em ultra alta definição. O volante, devidamente escamoteado, como é de costume e incentivado pelas seguradoras, deixa ao cargo dos computadores do veículo a tarefa de se conduzir, em velocidades estonteantes, até o centro da cidade. | |
Esse trajeto, apesar de demorar cerca de duas horas, era quase sempre monótono. Vez ou outra algum animal incauto, ou mesmo um boêmio, ingressava na auto pista – termo esse que ganhou uma conotação completamente diferente a usada nas décadas anteriores – e acabava criando um verdadeiro balé onde os veículos desviavam e freavam automaticamente, e em sincronia, evitando uma colisão. Para os passageiros, esses acontecimentos normalmente não passavam de um contratempo, ou no máximo uma bebida derramada. | |
Assistir a essas manobras pela primeira vez é sempre impressionante. Ainda mais conhecendo as engrenagens eletrônicas que fazem esse mecanismo funcionar. Câmeras e sensores espalhados pelos veículos monitoram continuamente a via. Antenas trocam sinais de rádio com os veículos próximos, permitindo que o computador embarcado tenha reações em ordens de magnitude mais rápidas de que qualquer ser humano. Acidentes fatais eram raríssimos, e normalmente envolviam motociclistas ou motoristas que insistiam em usar os controles manuais, apesar de nenhuma seguradora aceitar indenizar casos assim. | |
Um desses acidentes aconteceu justamente esta manhã. Por uma imprudência, uma motociclista esborrachou-se no asfalto, e sua moto acabou espalhando-se em peças pela pista. Apesar de passar pelo local poucos minutos depois, Hélio só se deu conta de um pequeno péinn que um parafuso da moto, ainda no asfalto, fez ao ser jogado pelo seu pneu dianteiro esquerdo de encontro com o fundo do seu carro. | |
Longe do seu conhecimento, aquele parafuso acabou acertando o conector da UCC, a Unidade Combinada de Controle do carro. Uma solução mais integrada que os engenheiros encontraram. Dentro dessa unidade estão os computadores centrais e as linhas de comando hidráulico que operam os mais diversos componentes do veículo. Do para-brisa de realidade aumentada ao sistema de freios anti-bloqueante e controle de tração independente. | |
Obviamente uma peça tão importante era conectada ao resto do carro com um conector robusto, preso por uma trava de metal, que no veículo de Hélio, na última manutenção, não foi devidamente travada até o fim. E aquele parafuso da motocicleta que se espatifou no asfalto acabava de soltar a dita trava. O que não era realmente um problema, era apenas uma garantia extra de que aquela peça não se soltasse. | |
Hélio já havia assistido suas séries e estava acompanhando o telejornal matinal quando a voz sintética do carro o avisou para se preparar para a chegada. O veículo estava prestes a sair de um dos túneis expressos em alta velocidade, reduzir, pegar uma saída lateral e então dirigir por mais algumas quadras pela superfície até a mega torre de escritórios. | |
Ao sair dos túneis, com a luz do sol diretamente a frente, os sensores do veículo escureceram o para-brisa automaticamente. Hélio olhou pela sua janela lateral e viu uma aglomeração fora do comum nas calçadas. Em uma fração de segundo, olhou para frente e viu uma multidão tomando a rua, protestando contra o governo do país. | |
Nesse instante, A UCC do carro de Hélio já estava adiantada em seu processo decisório. As 6 câmeras a frente, duas no espectro visível, e mais duas para cada faixa de infravermelho e ultravioleta, já haviam detectado as pessoas. O rangefinder laser confirmava com precisão milimétrica a distância para cada um dos obstáculos. Ciente da iminente colisão, o processador central calculou, em uma fração ínfima de um segundo que a aplicação da pressão hidráulica em 2490 PSI, quase no limite das 2500 fornecidas pela bomba hidráulica, resultaria na parada do carro a 3 metros do pedrestre mais próximo, considerando-se a aderência dos pneus medida durante a última frenagem. | |
Não levou mais que um centésimo de segundo para as válvulas solenoides se abrissem e uma enxurrada de fluído hidráulico sob alta pressão fosse enviada às pinças de freio do veículo. Porém entre essas pinças e as válvulas estava aquele conector destravado. A alta pressão, enviada de súbito, teve a força de uma marreta atingindo o tubo do conector, que foi empurrado para fora do alojamento. | |
Para orgulho dos engenheiros que projetaram a UCC, o conector não se soltou completamente. As conexões elétricas, embora não mais firmemente encaixadas, ainda faziam contato, o que permitiu que os transdutores de pressão instalados nas rodas acusassem imediatamente que a pressão era zero, e não os 2490 comandados. O processador central, então, disparou de pronto um sinal que acendeu uma luz vermelha na frente de Hélio. Ao mesmo tempo, o processador identificou que caso os motores fossem usados para frear o veículo, embora não fosse possível a parada completa, a velocidade no impacto seria de apenas 8 km/h, e a chance de um ferimento grave seria apenas de 15,82%, enquanto de ferimento fatal estaria dentro da margem de erro, zerada. | |
A grande corrente elétrica gerada no processo, ao passar pelo conector mal encaixado, e portando com uma resistência maior que a nominal, fez o que a lei de Joule previa, e aqueceu os contatos ao ponto de derreter sua liga de alumínio. Quase que imediatamente o processador central detectou o circuito aberto, e calculou com uma precisão de 12 dígitos o número de mortos e feridos para cada trajetória do veículo, considerando-se as deflexões máximas da direção para cada lado. | |
A única opção que UCC desconsiderou de imediato foi guiar o carro para uma coluna, onde naquela velocidade a morte de Hélio seria inevitável. Em qualquer veículo autônomo, a proteção aos ocupantes é primordial, afinal, ninguém em sã consciência compraria um carro que, em alguma situação, estivesse programado para intencionalmente lhe matar. | |
A trajetória do carro foi, por cada um dos bilhões de ciclos de processamento por segundo, calculada e avaliada pelos vários computadores que compunham a UCC. Nos gigabytes de memória que compunham aquela avaliação estatística, já se desenhava o fim da manobra: Subir na calçada e atingir um número reduzido de pessoas. | |
O impacto com a guia mudou a trajetória do veículo fora das previsões feitas, e também reduziu sua velocidade, apesar de, por um instante, tirar as rodas de contato com o pavimento. Com todas essas novas informações, toda uma nova série de cálculos foram feitos, e antes que Hélio tivesse percebido a batida com o meio-fio, a UCC já havia decidido para onde virar a direção. Apenas alguns metros na frente do veículo, o computador identificou um homem mascarado e portando um objeto pontiagudo em uma das mãos. Também identificou um sujeito usando um jaleco branco. As imagens foram enviadas então para a nuvem, por uma conexão de satélite de hipervelocidade. Aguardando por dois décimos de segundo, o tempo para o sinal chegar aos satélites de baixa órbita, ser processado e voltar com a resposta, a UCC fez o melhor que pode para manter o carro em uma trajetória que pudesse dar a chance de uma dessas pessoas sobreviver. | |
A resposta veio logo. Com a confiança de 98,7% o sujeito mascarado foi identificado pela rede neural como um assaltante. Já o senhor de jaleco, com uma confiança de 99,997% foi identificado como médico. Rapidamente a UCC tomou sua decisão, baseado em um estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, feito uma década antes, e virou as rodas na direção do mascarado, passando de raspão no outro homem. O mascarado voou por cima do carro, e como já estava calculado, não sobreviveu ao impacto. Ainda sem freios, o veículo onde Hélio agora estava aterrorizado, se guiou-se de maneira a raspar sua lateral contra um muro. O carro foi destruído, mas Hélio escapou sem um arranhão. Infelizmente o jovem que protestava, um estudante de medicina indignado com a corrupção do governo, fantasiado como a caricatura do presidente que roubava a nação não teve tanta sorte. Já em estado de choque, o pipoqueiro sobrevivente caia de joelhos, em prantos. |
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